Coreia do Norte; o país mais isolado e desconhecido.

 

Rui (2)

Coreia do Norte: viagem ao país mais isolado da Terra

É a incógnita da Terra. O país em que ninguém quer viver e que muitos desejam espreitar. É outro mundo, dentro daquele que tanto apreciamos. Na Coreia do Norte “o doce sabor da liberdade que, tantas vezes nos esquecemos de salvaguardar e defender, renascem em todos nós com enorme força”. Rui Muñoz esqueceu preconceitos e decidiu pisar o pedaço de terra recriminado “aos olhos de meio mundo”.

Como é que se prepara uma viagem ao país mais fechado do mundo?

Uma viagem à Coreia do Norte, o país mais fechado do mundo, é muito fácil de preparar para um viajante, qualquer que sejam as suas motivações para a viagem. Porque essa viagem não se prepara, tem que ser comprada, num pacote de ‘’tudo incluído’’, de acordo com as normas e autorizações de entrada vigentes. Todas as agradáveis tarefas que levam um viajante a preparar a viagem, não se cumprem nem são necessárias, na Coreia do Norte. Porque as viagens em autonomia são proibidas, todo e qualquer intuito de improvisação é completamente impossível. Mas estas limitações decorrentes do regime, não implicam que a viagem tenha uma carga negativa, antes pelo contrário, pois cabe a cada viajante, a arte de saber conquistar os guias. O que não é difícil, até talvez seja fácil, porque a vontade de eles conhecerem e saberem, é igual à nossa.

É nessa partilha de vidas e experiências, que se transforma uma viagem à Coreia do Norte, (com um regime totalitário e claustrofóbico que todos condenamos), numa experiência de vida. Os valores sagrados da democracia e da liberdade de expressão e opinião, o doce sabor da liberdade que, tantas vezes nos esquecemos de salvaguardar e defender no quotidiano, renascem em todos nós com enorme força, numa viagem à Coreia do Norte.

Se eles tiverem confiança em nós, se se estabelecer uma relação de amizade e cumplicidade, muito será permitido, desde que nunca em circunstância nenhuma, ousemos sair, ou fotografar, sem a companhia e o parecer favorável do guia. Mas tudo isso é fácil de conseguir, porque eles são ainda mais interessados do que nós, em partilhar e questionar.

Que expectativas tinha antes de viajar?

Tinha todas as expectativas que uma viagem a um mundo fechado e claustrofóbico, num país de ficção, despertam. Uma enorme curiosidade de ver e sentir, aquela realidade diferente e de, tentar ver e sentir, mais além do que uma viagem planeada e organizada permite. Senti pela primeira vez na vida, aquele nervoso da expectativa, da descoberta de um mundo diferente, enclausurado.

Tinha apenas 2 certezas quando cheguei. A primeira, a necessidade de um bom relacionamento com os guias, o que acabou por ser muito fácil, por eles serem extremamente afectuosos e simpáticos, com grande vontade de comunicar.

A segunda, foi a certeza de que a melhor forma de combater o regime, é visitar o país, pois por cada estrangeiro que lá entre, acontece sempre uma troca de ideias, nos dois sentidos. E essas trocas de vivências são fundamentais, para eles e para nós.

Foi alvo de algum tipo de revista aos seus bens pessoais quando chegou ao aeroporto?

À chegada ao aeroporto internacional de Pyongyang, todos os passageiros com telemóveis, computadores, ‘’tablets e iphones’’, são chamados a um compartimento, onde os aparelhos são ligados e verificados, mas num ambiente calmo e nunca intimidatório. Perguntam se transportamos filmes e, algumas vezes verificam se o fazemos. Questionam também acerca dos livros que transportamos, mas sem criarem situações stressantes. Tudo acontece com grande naturalidade e, o estrangeiro chegado à Coreia do Norte, nunca se sente minimamente incomodado. No aeroporto de Pyongyang, os militares recebem-nos e tratam-nos como se fossemos convidados oficiais do regime. Logo após a saída da alfândega, os nossos guias, identificaram-nos de imediato. Tudo é eficiente na Coreia do Norte. Todos os formulários, entregues no voo desde Pequim, foram verificados por militares na alfândega do aeroporto e colocaram algumas questões, sempre de uma forma educada e num perfeito Inglês.

À chegada ao hotel, todos os passaportes e vistos, foram recolhidos pelos guias oficias. Só foram devolvidos, no último dia, no momento de embarque no comboio para a China.

Na fronteira de saída, depois de uma viagem de comboio desde Pyongyang, os passaportes são recolhidos e devolvidos passadas 2 horas, todas as fotografias e filmes em telemóveis e ‘’iphones’’ são verificados, mas de uma forma rápida. Algumas bagagens são abertas aleatoriamente. Durante esse período de tempo, o comboio permanece estacionado.

O que é que não se pode levar para a Coreia?

Nenhum visitante pode entrar na Coreia do Norte, com livros que possam perturbar a doutrina e propaganda do regime, tais como livros políticos, económicos, sociais e outros, que possam negar as verdades absolutas e irrefutáveis, os dogmas, do regime. Também não podem entrar filmes. As lentes das máquinas fotográficas não podem ultrapassar os 150mm.

Que diferenças culturais se encontra a olho nú?

Tudo na Coreia do Norte, é completamente diferente da nossa realidade e das anteriores experiências de viagem. Vamos preparados para uma sociedade de características Asiáticas, que foi totalmente destruída na guerra da Coreia de 1950 a 1953. A realidade é incomparável com qualquer outro país no mundo, porque se trata de um regime totalitário, claustrofóbico e encerrado ao mundo, em que toda a realidade é construída com base numa ideologia em torno do líder e da sua vontade suprema. Senti a Coreia do Norte, como um país de ficção, militarizado, cinzento e onde o indivíduo se anulou em benefício do colectivo. Nenhum de nós consegue entender, aquele mundo em que tudo nos choca e cujo regime rejeitamos totalmente, mas sentimo-nos de imediato cativados pela população, mesmo sem conseguir com ela contactar. Pode parecer absurdo, mas foi o que eu senti.

Como é que é o povo coreano?

O povo da Coreia do Norte é muito tímido, mas simpático e afectuoso, recebe-nos de braços abertos, apesar da barreira da língua e da total ausência de liberdade de circulação em autonomia, sentimo-nos sempre bem recebidos e acarinhados. Até pelos militares no paralelo 38, que se ofereceram para serem fotografados connosco. Em nenhum momento nos sentimos incomodados ou pressionados, sendo sempre tratados e recebidos, com afecto e simpatia.

Sentiu os efeitos da propaganda do regime?

A propaganda do regime é omnipresente e omnipotente, tudo é propaganda política do regime e das suas teorias ideológicas. O mais pequeno gesto, a mais simples conversa, são meras representações do regime. A arquitectura, o urbanismo, a estatuária, os espectáculos, até a música, são componentes essenciais e fundamentais do regime. Porque a população desconhece totalmente o que se passa no resto do mundo e toda a pouca informação que o regime fornece, é completamente manipulada, com a finalidade única de ter intuitos propagandísticos. Na Coreia do Norte, existe a mais perfeita e totalitária máquina estatal de propaganda. O colectivo do regime e da população, confundem-se como um todo. Nada existe fora do regime e dos líderes. A propaganda é total e avassaladora

Qual a maior dificuldade que sentiu durante os dias que passou pela Coreia do Norte?

A única dificuldade que senti, foi a total falta de autonomia, de poder inventar cada um dos dias, à medida do apetite de cada momento, de ser indisciplinado e livre nos percursos pelo país. Essa inibição de liberdade aplica-se também à fotografia, é necessário perguntar se podemos fotografar e, muitas vezes as imagens são verificadas, podendo ser apagadas, se não cumprirem os cânones autorizados pelo regime. Mas quero esclarecer que ao decidir fazer a viagem à Coreia do Norte, já tinha perfeita consciência de todas as limitações impostas e, aceitei-as sem hesitar, não me devo queixar nem lamentar.

O que é que recorda de Coreia do Norte?

Recordo um povo que nada sabe acerca das coisas do mundo, que vive fechado numa redoma claustrofóbica e vítima de uma absurda propaganda de um regime totalitário e de um chocante culto da personalidade dos líderes. Mas recordo também que, esse povo, é completamente genuíno nos seus afectos ao regime e aos líderes, pela simples razão de que nunca conheceu a liberdade, a democracia, o livre arbítrio de saber e ousar escolher ou recusar, de poder decidir qual o caminho a seguir.

Recordo um povo que nada sabe acerca de nós, os visitantes, mas que nos sabe receber com um sorriso nos olhares e uma partilha do pouco que têm.

Se tivesse que guardar apenas um momento da viagem à Coreia do Norte, esqueceria monumentos e paradas militares, o regime, a propaganda e, escolheria ‘’apenas’’ os afectos, as emoções de um povo. Nunca esquecerei aqueles que conhecemos durante a viagem.

Sei que foram poucos, mas valeram por milhões.

Que história conta quando fala desta viagem a um amigo?

Tenho contado muitas histórias e ‘’estórias’’, por exemplo o facto de desconhecerem os ‘’Beatles’’, os ‘’U2’’, Saramago e Garcia Marquez, Verdi e Mozart. De não saberem que há mais mundo para lá das suas fronteiras. Curvarem respeitosamente e colocarem flores nas milhares e gigantescas estátuas dos líderes, que povoam todo o país. Falarem da Coreia como um todo indivisível. Acreditarem genuína e ingenuamente que os líderes são entidades ‘’nascidas no céu’’. Serem educados, simpáticos, afectuosos e mostrarem-nos tudo o que têm, com sinceridade e orgulho. Terem um respeito infinito pelos militares e aplaudirem-nos com enorme alegria, quando eles desfilam em parada. Ouvirem de forma entusiasta grupos musicais, politicamente correctos e protegidos pelo regime, como as Moranbong, que são fabulosas. Serem perfeccionistas, pontuais, rigorosos, mas também imensamente tímidos e introvertidos. Sorrirem sempre para nós. Usarem as vestes tradicionais e juntarem-se em grupos de centenas de pessoas, para dançarem nas praças, ao som de hinos patrióticos e revolucionários. Viverem no mais fechado e claustrofóbico regime, do mundo, sem de aperceberem disso.

Qual o custo médio de uma viagem à Coreia do Norte?

Tendo em conta que só se pode visitar a Coreia do Norte, num programa organizado e autorizado, pelas autoridades do país. Programa esse que inclui todos os alojamentos, alimentação, viagens a partir e de regresso a Pequim, todos os transportes internos e visitas, o custo médio nunca será inferior a 2.000 Euros.

Excluem-se os voos internacionais até Pequim, que terão um custo médio, de 500 a 800 Euros, conforme a data da reserva e a época do ano. Os condicionalismos que o regime impõe à entrada de visitantes estrangeiros, obrigam a que os custos de uma viagem à Coreia do Norte, sejam sempre superiores, a uma viagem em autonomia.

Esta viagem não existe; a Coreia do outro lado do espelho

Esta viagem não existe: a Coreia do outro lado do espelho

21 Outubro 2015

Já viajo há 4 décadas, já fiz viagens pensadas, idealizadas, sofridas, alegres, caóticas e imprevisíveis, mas nunca houvera feito uma viagem impossível. No horizonte das minhas vetustas memórias,TheWanderlust_TheWanderblog_Wanderlist_Coreia_norte (3)não recordo em momento algum, ter ousado sonhar, visitar aquele indecifrável e enigmático país que ocupa a metade norte de uma estreita península, quase se soltando da Ásia, quase tocando o império do Sol.

A denominação oficial e ortodoxa, chama-lhe desde há mais de meio século, República Popular Democrática da Coreia. Não é república, porque é hereditária, nem é popular ou democrática, porque é autoritária. Mas é metade de um país que é uma parte de um todo, que deveria ser um, mas que são dois. Para mim é a Coreia e, isso é quanto me basta, para lhe ter carinho. Os deuses que formaram os continentes, crasso erro cometeram, ao colocar aquele povo afectuoso, tímido, introvertido e simpático, entre dois mundos antagónicos. Memórias de ultrapassados e moribundos tempos, que a vã ignorância dos políticos e estrategas não ousou ainda derrubar. De um lado a força de uns, do outro lado a força de outros. Do desconhecimento nasce o preconceito, deste floresce o medo que se tempera de ódio, porque a ignorância das coisas do mundo é o pior inimigo do homem.

TheWanderlust_TheWanderblog_Wanderlist_Coreia_norte (4)Todos os espelhos têm dois lados, ambos desfocam as imagens, conforme a perspectiva do olhar, que é sempre condicionada pela presença do militar, de cada lado desse espelho. Nada me liga ao regime totalitário que enclausura um povo, tudo me afasta do tenebroso culto da personalidade, mas tudo me prende ao afecto daquele povo, que sem nada saber acerca do mundo, tudo nos oferece do pouco que tem. Não vou aqui escrever, nada de concreto sobre a Coreia do Norte, apenas transcrevo o que por lá muitas vezes escutei; ‘’…mais vale ver uma vez, do que ouvir cem vezes…’’.

Se tu, paciente leitor, tiveres o engenho e a arte de, ao leres estas breves linhas, tão lacónicas, quanto eu pretendo que sejam, sentires a vontade de viajar no espaço e no tempo, para conhecer aquele povo, aquela terra, pintados de preto, branco e cinza, invisíveis ao olhar de quase todos, então és um dos que sabe ver.

Mas nunca te esqueças de que a minha palavra, vale apenas o que vale, que é o mesmo que dizer que vale muito pouco.

Todas as fotografias são da autoria da Maria R. Marques, tiradas aquando da sua viagem à Coreia do Norte.

O fabuloso e desconhecido Irão.

O Irão é vasto e populoso, Asiático e Chiita, de cultura milenar e população hospitaleira, estende-se de Norte para Sul, nasce junto ao Mar Cáspio e faz fronteira com a Arménia, Azerbaijão e Turquemenistão, estende-se até ao Golfo Pérsico, debruça-se no estreito de Ormuz, sobre o Golfo de Oman e alarga-se até o Mar Arábico onde se abre ao Oceano Indico. Encosta-se ao Médio Oriente a Oeste junto ao Iraque e à Turquia e alarga-se para Leste até ao Afeganistão e Paquistão. Nesse fabuloso país conversa-se em Persa e negocia-se em Rials.

Há muitos anos, quatro décadas, pensei pela primeira vez, se bem me lembro, em como gostaria de, um dia poder visitar o Irão. Nesse já longínquo início da década de setenta, as revistas e jornais, abriam-nos as páginas com as fotografias, das comemorações dos 2.500 do império Persa, acontecidas nas ruínas de Persépolis. Decorria o ano de 1971 e eu, uma criança deslumbrada de escassos 10 anos, gravei na memória já aventureira e preenchida de sonhos nascidos de livros, a vontade de um dia peregrinar pelos pórticos e escadarias da monumental cidade de Dário. Então já sonhava com Alexandre da Macedónia, com os Assírios, os Hititas, os Persas e os Egípcios, com as civilizações Indianas, com marajás de Jaipur, cremações em Varanasi e o Taj Mahal, com as nascentes do Nilo, com as culturas perdidas dos Andes e da América central, com a muralha da China e os templos de Angkor, com os desertos de África e da rota da seda, com Lawrence da Arábia e com o Rajá Brooke, com savanas, estepes e com o vale do Rift, com Petra, Damasco e Jerusalém, com Marraquexe, Isfahan, Xian e Cuzco, com a baía de Halong e as ruas de Praga, com cidades medievais de altivas e inexpugnáveis muralhas e com os Kracks do médio Oriente, com a Anatólia, os vales das kashbas do Atlas, Sidi Bou Saíd e os mosteiros dos Meteora, com Creta, os templos de Agrigento, Florença, Cesky e o litoral do Adriático, com as ruas e basílicas de Roma, Londres, Paris e New York, nas montanhas e rios da Indochina e nos lagos salgados dos Andes, nas aldeias de pescadores das Astúrias e Cantábria e no litoral Africano do Índico, em suma em todos os lugares e em lado nenhum, sonhava com ver, conhecer e aprender, para tentar tudo compreender, estranha ambição a minha. Nestes lugares e em centenas de outros com nomes difíceis ou impronunciáveis, isolado no meio da multidão, ou acompanhado pelo silêncio e pela paisagem, senti-me em paz e feliz por ter o coração aberto e o espírito livre, para ver, conhecer, aprender. Porque assim não esqueço, que cada estação tem os seus frutos e as suas flores, que cada árvore tem o seu tempo e que cada homem tem o seu lugar, mas que todos os homens cabem no coração de um único homem, porque a nossa capacidade de amar e compreender é infinita e eterna.

Acredito que cada espécie animal, ou vegetal, é como cada homem, indispensável e insubstituível neste planeta que já foi azul e verde e que em cada dia que passa, se torna mais cinzento, mas ao contrário dos profetas da desgraça, que afirmam que já é tarde, eu grito que ainda não é demasiado tarde, que ainda temos tempo, de mudar, de criar um mundo melhor, de acreditar que somos todos iguais e de tomar consciência de que se uma criança morrer de fome, no outro lado do mundo, então é um pouco de cada um de nós que morre também.

É esta a minha visão do mundo, da natureza, dos povos e das culturas, a nossa riqueza está na nossa diversidade e ainda bem que assim é.

Em 1971, uma faustosa celebração comemorativa dos 2.500 anos do império Persa, aconteceu nas ruínas de Persépolis, por ordem e vaidade do então Shah Reza Pahlavi, o último da dinastia e o ultimo imperador do Irão. Não foi uma festa para o povo do Irão, obrigado a permanecer a uma cautelosa distância, para não importunar o Shah e convidados. Foi antes uma feira de vaidades, para o então todo-poderoso Shah e os seus amigos de então, os mesmos que 8 anos depois, não lhe deram abrigo para morrer. Nesse momento nasceu o meu sonho Persa e levei quase uma vida a concretizá-lo. Tinha eu então 10 anos de idade e todas as ilusões e esperanças de uma quase criança, depois vivi sonhos e utopias de mais bela revolução do mundo, que me levou por uma juventude inquieta, mas pouco irrequieta. Estudei e continuei a sonhar, desiludi-me cedo com algumas pessoas e muitas circunstâncias da vida. Li muito e estudei tudo o que não interessava aos adolescentes como eu, mas aprendi, aprendi, aprendi sempre, sem nunca me cansar. Viajei e continuei a ler, quase com um carácter compulsivo, comecei a escrever, como um aprendiz de feiticeiro que queria ser escritor e, que no seu íntimo, sabia que nunca o poderia ser. Inventei registos de escrita sempre diferentes e continuei a viajar e a escrever e a aprender, a conhecer e a acreditar que somos todos iguais, apesar de todos diferentes. Corri mundo, primeiro com alguma companhia, depois com companhias esporádicas, com desconhecidos e sozinho e acabei por encontrar o meu caminho, a minha forma insatisfeita de viajar, ‘’…o só estar bem onde não estou…’’, ‘’…o já lá estar antes de chegar e ainda lá continuar depois de partir…’’. Fiz amigos e encontrei e perdi pessoas, algumas passaram fugazes, mas permaneceram em mim, porque ‘’…eu, sou eu e a minha circunstância…’’, como disse o filósofo. Outros que ficaram por muitos anos, esfumaram-se com ‘’…esse leve ar do tempo…’’ e esqueci-os. A vida é assim, imperfeita e injusta, talvez só a morte seja perfeita.

Levei cerca de 40 anos a chegar ao Irão, no final de um dia de Abril de 2011.

Quando vi um programa de uma viagem cultural e de aventura, inventada dentro do espírito da Nomad, pelo Filipe Morato Gomes, então e em poucos minutos, decidi que era já o tempo da partida, de mais uma aventura para aprender e abraçar outro povo, outra cultura. O Irão aproximava-se agora, do meu horizonte visual, pois a Pérsia já se instalara há muito nos meus horizontes culturais, mas para partir não bastam as vontades e os impulsos, são necessárias as burocracias, preencher formulários, pedir autorizações e vistos e procurar voos. Como seria bom e perfeito se fosse suficiente apenas partir, resolver num dia e partir no outro, sem destino, com rumo incerto. Estranha utopia a minha, ou se calhar, espantosa ingenuidade. Como eu gostaria de poder percorrer um mundo sem fronteiras físicas, nem barreiras no coração dos homens.

Uma semana antes da partida, ainda não tinha o visto, nem a autorização de entrada no Irão, o meu passaporte permanecia na embaixada à espera de um tal código de acesso, mas como ao viajante crónico põem os deuses todos a mão por baixo, finalmente, no dia 31 de Março, tudo se resolveu, a autorização de entrada no Irão foi dada, o visto foi autorizado e o meu novo passaporte, com a minha mais assustadora foto, parecida com a imagem de um personagem do ‘’Crime e Castigo’’ já estava nas mãos da ‘’Nomad’’. A propósito de passaporte, é uma experiência traumatizante, tirá-lo no Governo Civil de Coimbra, onde a máquina fotográfica parece um aparelho de raio X do século passado e as vozes dos funcionários, não são vozes, são mais grunhidos, mas como quem corre por gosto não cansa, é sempre bom saber que nós, os ‘’Tugas’’, somos mal tratados em casa e bem recebidos no exterior.

A mochila é sempre preparada tendo por base o critério’’… menos é mais…’’, roupas leves e simples, que possam ser vestidas ás camadas e fáceis de lavar e secar pelo utilizador. Com pouco mais de 8 quilos, incluindo carregadores, baterias e produtos de banho, fica o problema resolvido. Nos bons e já longínquos tempos, antes das paranóias colectivas e sucessivas que assaltaram as viagens aéreas, em que era permitido transportar tudo o necessário para 3 semanas de aventura, em bagagem de mão, eu conseguia ser sempre o primeiro a sair do aeroporto.

No dia fatídico de 6 de Abril de 2011, o país dos ‘’Tugas’’, afunda-se, bate na lama, como disse Miguel Sousa Tavares, numa crónica do ‘Expresso’’, escrita dias antes: ‘’…afundamo-nos, caramba, mas merecemos…’’. Estranho povo, que permite políticos que chafurdam como porcos, no lodaçal que nós os ajudamos a criar, pela força dos nossos votos depositados nas urnas, que já só são sepulcros.

Parti desanimado e desiludido, com medo de um futuro próximo e trémulo, que me impeça de viajar, em suma, de viver.

Rui Neves Munhoz, Abril de 2011. Uma viagem inventada pelo meu Amigo Filipe Morato Gomes e pela ‘’Nomad’’ e partilhada com: a Rita e a Susana, a Maria e a Jo, o Joaquim e a Lena, a Joana e a Rosebel, o Bruno, o Filipe e myself.

TED X Cantanhede, 10 de Maio de 2014: ”’…A Pegada Intrusiva…”

 

”…A Pegada Intrusiva…”

RUI MUNHOZ
Nascido em 1961, algures junto de uma fronteira, de olhos virados para o Norte de África. Estudante de Direito, por obrigação, na Universidade de Coimbra, na já longínqua década de 80 do século e milénio passados. Viajante por paixão e educação, desde há 4 décadas. Escritor por vocação e devoção, com a suprema liberdade que lhe permite o não ter um único livro publicado. Depois de cada grande viagem, deixa as ideias e emoções assentarem durante um mês e só então, passa as vivências para o papel. Escreve de uma forma rápida e depois não altera nem corrige. O texto que nasce, é o que permanece escrito. Partilha os textos, que são caóticos e desorganizados, pessoais, mas transmissíveis, com companheiros de aventura, família e amigos e já conseguiu inspirar alguns a sair da zona de conforto e partir à aventura. Com a paixão das viagens e da leitura, cresceu a vontade de escrever e ao longo das últimas décadas passou ao papel, muitas memórias e invenções: relatos de aventuras algures pelo mundo, textos diversos, contos e trabalhos escritos de todo o género.

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Myanmar 2013: As brumas de Burma.

Esta foi mais uma viagem sonhada, mas sempre adiada; umas vezes por escassez do vil metal, outras por oportunidades falhadas. Há mais de um ano, numa sonolenta manhã, antes do meu diário peregrinar rumo ao local do sacrifício, abro a caixa de correio electrónico e, eis que uma surpreendente mensagem da Susana, me fez iluminar a cinzenta manhã. Passo a explicar; a ‘’Nomad’’ inventava uma nova aventura, desta vez por entre as brumas de Burma, a milenar Birmânia do meu imaginário; velho reino de dourados pináculos e clima inclemente, onde alguns poucos homens rudes, destruíram o presente e o futuro de muitos homens bons.

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Muitos meses decorreram deste esse dia, entretanto em Dezembro de 2012 e Janeiro de 2013, percorri os caminhos dos reinos do Camboja e da Tailândia, com a ‘’Nomad’’ e o Jorge Vassallo. Continuou em projecto de execução a aventura na Birmânia, mas apenas após o regresso do Jorge da América do Sul e do Trans Siberiano, no Verão de 2013. O tempo inexorável continuou a correr e a data prevista de Outubro de 2013 aproximou-se em largas passadas. Comprados os voos, via Amesterdão e Guangzhou até Yangon, com alguns meses de antecedência, a preço de saldo, na já habitual e inevitável, minha ‘’velha amiga’’ ‘’China Southern Airlines’’. Em cada interminável viagem aérea na ‘’CZ’’ fico com os ‘’olhos em bico’’, mas poupo, algumas centenas de míseros Euros.

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Decorreu lentamente o mês de Agosto; escaldante e incendiário, tão perigoso quanto um inclemente e castigador governo, autoritário, primário e vingativo. Assim decorriam as semanas da ‘’silly season’’, alternando o aumento do horário de trabalho, com uma encapotada lei de despedimentos, mas surpreendentemente o país miserável, deu tímidos sinais de crescimento. Oportunistas políticos gritaram; ‘’…aleluia…’’. Crédulos e cépticos, fizeram e refizeram as contas e chegaram à mesma e imprevisível conclusão. Eis quando, um velho tolo, a quem o calor e a maldade dos homens, havia já toldado a lucidez, gritou suavemente; ‘’…o desgoverno está de férias…’’. Por essa simples e única razão, houve crescimento desse malfadado produto interno bruto, que nos embrutece a todos. Sem ‘’desgoverno’’ não havia medidas de estúpida austeridade e os ‘’Tugas’’ puderam reaprender a respirar, ainda que medrosa e timidamente, por um escasso período de breves semanas. Até que um cinzento Outono chegasse e a todos afogasse, em dúvidas e dividas, em mágoas e medos, mas essas serão outras tristes histórias.

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Este narrador, continuava expectante, sem visto para as brumas de Burma, aguardando um ‘’mail’’ milagroso da Susana e, ei-lo que chega, lá para meados de Setembro. Preenchidos formulários e questionários, feitas novas fotos sobre fundo branco, ao melhor estilo de um cadastrado, passaporte e voos, tudo reenviado para a Susana, que tudo consegue tornar realidade. Poucos dias decorridos, paguei o milionário visto; 120 Euros! É caso para escrever que as ditaduras militares tratam-se muito bem, com vistos de turismo por este elevado montante, nem a duquesa de Alba, vai a Myanmar.

Ainda o Peter Steps Rabbit, de triste memória, não se lembrou de ‘’inventar’’ vistos para quem entra, ou sai, do rectângulo da ‘’Tugolândia’’ e, já agora, para quem cá permanece agrilhoado também.

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Quando surgiu a hipótese de viajar pela Birmânia, ocorreu-me logo a ideia peregrina de tentar contactar com Aung San Suu Kyi, a prémio Nobel da Paz no já longínquo ano de 1991. Através do meu amigo Pedro Krupensky, da ‘’Oikos’’, consegui os contactos de um tal Kyi Toe, membro do partido ‘’Liga Nacional para a Democracia’’. Contactei com ele, com o parlamento de Myanmar e com os representantes da ‘’Liga’’, em Londres, mas todas as tentativas foram infrutíferas, no sentido de agendar um encontro. Dificuldades de agenda e de local de encontro, tornaram impossível esta minha vontade. Nesses dias Aung San Suu Kyi, percorria a Europa e eu estou sempre do lado incerto da barricada à hora errada. Paciência, para a próxima tento conhecer a duquesa de Alba, talvez seja mais fácil.

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No Sudeste Asiático, a península da Indochina, desenha-se como uma descaída barriga da Ásia e prolonga-se pela estreita península da Malásia, até ao imenso arquipélagos insular da Indonésia. Toda a região é dominada por vastos planaltos e planícies, rasgadas por grandes rios, que transportam as sementes da vida e o medo da morte. A Indochina de belíssimas paisagens aluviais, ergue-se em magníficos e tenebrosos vulcões no arquipélago Indonésio. Os deuses do clima, despejam sobre a Indochina, uma climatologia de características tropicais húmidas, sujeita a monções prolongadas.

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Percorrer os diversos países da Indochina, sem rumos demasiadamente definidos, propicia-nos a celebração da vida e da natureza, num imenso território em que a natureza dos homens; calma e afectuosa, sofreu já de imensas violências e indizíveis perigos. A crueldade de outros e poderosos países, já despejou longas noites de terror, na história recente de tão afectuosas populações. Assim são os ainda muito cruéis homens do mundo, derramando a morte, onde apenas deveria ser celebrada a vida.

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Poucos a conhecem pelo nome oficial, muitos nem imaginam onde se localiza. Será quase um insondável mistério, para a maioria, mas para alguns, é uma realidade. É vasta e populosa, quase plana e aluvial, atravessada por um grande rio; o poderoso Irrawaddy, caudaloso e lamacento. Sem ele não poderia viver e, muitas vezes, com ele também não. Os campos de campos de arroz dominam a paisagem, sofre de uma climatologia rigorosa e extrema, temperado por desmesurados calores e húmidas chuvadas. Populosa quanto baste, porque apesar de ultrapassar os 50 milhões de habitantes, tem uma fraca densidade populacional. É talvez o mais desconhecido e pobre país da Indochina, acentuadamente claustrofóbico para os povos autóctones, mas fascinante para os visitantes. Terra incógnita, que tem povoado o meu imaginário, desde há décadas. Há dias e viagens que tardam em chegar, mas o importante é que os projectos de concretizem, ao invés de permanecerem encerrados na gaveta das utopias.

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Sempre que soltamos amarras das nossas preguiçosas zonas de conforto e, nos libertamos de falsas dúvidas e preconceitos ambíguos, então poderemos certamente descobrir muito mundo, por esse mundo fora.

Sou muitas vezes criticado, por amigos e colegas, por gastar dinheiro em viagens a países totalitários, regimes militares, teocráticos, democracias fictícias fortemente musculadas, onde os direitos fundamentais, a liberdade de expressão e associação, os direitos das minorias e tudo o que é inerente à própria condição do ser humano, se apresenta condicionado ou amordaçado. Aqui confesso esses meus crimes, apenas justificados pela enorme ânsia de ver, conhecer e aprender. Não sei se enfermo de defeito, ou vício, apenas sei que não sei viver sem poder viajar, ou ler, ou escrever.

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A Birmânia, Burma, ou Myanmar, são denominações que têm a mesma origem etimológica, chegando-nos através de corruptelas ou variações de nomes locais, derivados ou adaptados pelos colonizadores. As formas literárias, ou coloquiais, mesmo empregues pelas populações autóctones, quer por escrito, quer na oralidade, são de difícil tradução e explicação.

Entre o trópico de Câncer e o Equador, reinam as monções, devastadoras algumas vezes, mas essenciais sempre. Sem a elevada pluviosidade sazonal, que tudo cobre e arrasta, numa fúria temida e ansiada, os povos do Sudeste Asiático, teriam escassas condições de sobrevivência. Em Myanmar a forte precipitação e a monção, levaram a que a bacia hidrográfica dos grandes rio Irrawaddy, concentrasse grande parte da população do país. Porque as férteis terras, constituem divina bênção dos deuses.

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Myanmar, terra de lugares de impronunciáveis nomes, a velha e ancestral Birmânia, a Burma dos colonizadores Britânicos; espera por mim, perdão leitor, quero escrever; por nós. Imagino-a como uma terra secreta, coberta por um infinito céu de brumas, um lugar onde as terras e as águas, mudam constantemente de lugar, povoada por gente infeliz com lágrimas, salpicada por esguios pináculos de fulgentes dourados, que rasgam luxuriantes florestas, onde os verdes se multiplicam numa miríade de indecifráveis tonalidades, com cidades em madeira de teca e douradas estátuas de plácidos, sorridentes e enigmáticos Budas. Tudo temperado por odores de incenso e encerrado numa enorme campânula de quentes e húmidos interiores.

Leitor paciente, não desesperes nestes primeiros parágrafos, não cortes ainda os pulsos, pois enfermo de múltiplas maleitas, de entre as quais, elevadas e compulsivas doses de leitura e uma febril imaginação, mas talvez não sejam o maior dos meus males.

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A Birmânia faz fronteira com muitos e poderosos vizinhos; a Índia, o Bangladesh, o Tibete, a China, o Laos e a Tailândia. Talvez esta fascinante vizinhança, tenho sido parte fundamental da claustrofobia dos políticos e militares Birmaneses. Os dois gigantes económicos e políticos que dominam o Sudeste Asiático; a China e a Índia, condicionaram sempre, alternada, sucessiva ou ciclicamente, desde há séculos, toda a região da Indochina. Talvez todos aqueles povos e culturas milenares do Sudeste Asiático, tenham recebido o inevitável estigma, de por caprichos da natureza, da geografia e das migrações, terem ficado muito longe dos deuses e, demasiado perto da China e da Índia.

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A Birmânia é terra de muitas diásporas, estendidas por países vizinhos e limítrofes. O coração de Burma, bate em muitos campos de refugiados. Em cada acampamento, conforme a sua localização, falam-se línguas diferentes: quatro grandes famílias linguísticas, dialogam, ou talvez não, em Myanmar. O Birmanês é a língua mais falada e pertence à família Sino-Tibetana, em conjunto com o Karen e o Chinês. Os Birmaneses constituem cerca de 70% do total da população, professam o Budismo Teravada, têm como épico, uma versão adaptada do ‘’Ramayana’’, com diversas influências Tailandesas, Mon e Indianas e respeitam e veneram os espíritos da natureza; os ‘’nats’’. Assumem o Budismo como uma forma de vida e, ao longo dela, tornam-se por escasso ou largo período de tempo, noviços ou monges.

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Myanmar é um território de grande diversidade étnica e cultural, que embora reconhecidas oficialmente pelo poder politico e militar vigente, permanecem marginalizadas e aprisionadas da sua condição de minorias.

Na velha Burma, a religião dominante é o Budismo Theravada, a mais antiga escola de Budismo que procura conservar os ensinamentos originais de Buda, compilados no milenar Tipitaka. Thera significa ‘’anciãos’’ e Vada significa ‘’palavra ou doutrina’’. Ciclicamente alguns grupos extremistas Budistas Birmaneses incentivam algum tipo de xenofobia religiosa e perseguição ás pequenas comunidades muçulmanas.

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O isolamento internacional de Myanmar, enclausurado pela ditadura militar, levou à estagnação económica, como consequência o meio ambiente e os ecossistemas da Birmânia, permaneceram preservados. Metade do pais está coberto por florestas, povoadas por árvores de teca, seringueiras, bambu, mangues, coqueiros, acácias, todo o tipo de palmeiras e árvores de fruto caracteristicamente tropicais, mas a vegetação é de tal modo diversificada que, nos planaltos, abundam carvalhos e pinheiros.

Os militares dominam a mineração de metais, pedras preciosas e a exploração de jazidas de gás natural. Com a ajuda e beneplácito dos poderosos vizinhos, a quem convém um regime autoritário em Yangoon.

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A antiga Rangum, a maior cidade de Myanmar, uma ‘’cidade sem inimigos’’, espera por nós. Não demasiado grande, nada que se compare à populosa e alucinante Bangkok, mas muito populosa, com certamente mais de 4 milhões de habitantes.

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Cheguei a Yangon, numa tarde de Outubro. Fui recebido por sorrisos e por extraordinária eficiência. Em poucos minutos encontrava-me no ‘’hall’’ de chegadas do aeroporto. De imediato, apercebi-me de que todos os homens usavam o tradicional saio comprido Birmanês; o ‘’longyi’’, um ‘’must’’. Os inúmeros taxistas, vestiam-no com camisa imaculadamente branca e, todos os outros ‘’machos’’ com t-shirt. Fiquei logo com vontade de, derrubar preconceitos e, converter-me ao trajo tradicional de Maynmar. No exterior, um choque térmico avassalador, como uma onda de calor húmido, deixou-me ‘’kO’’. Mas como diz o provérbio; ‘’…quem corre por gosto, não cansa…’’ e, em breves minutos, estava feita a aclimatação.

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Tenho a sorte de ter duas personalidades; a primeira, dentro deste rectângulo à beira debruçado sobre o precipício, onde estou pleno de dúvidas e de angústias existenciais; a segunda, descontraída e divertida, para além de Badajoz, desde que passe esta claustrofóbica fronteira que me encerra e amordaça. De quem é a culpa, perguntará o leitor atento; será certamente do estigma de uma tradição cultural de origem Judaico-Cristã, plena de preconceitos e puritanismos. Chegado ao ‘’Thamada’’, a nossa casa comum em Yangon e, seguindo as indicações do Jorge, encontrei os companheiros de aventura, alegremente dispostos em redor de uma mesa, plena de deliciosos petiscos, regados com gelada cerveja. Esta é a melhor forma de nos conhecermos, em qualquer parte do mundo.

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Hoje, a antiga capital da Birmânia, é uma cidade vasta, plana, com lagos e espaços verdes, com muitos quarteirões coloniais, degradados pelas inclemências do clima e alterados pelas influências dos comerciantes Chineses e Indianos. Toda esta zona ribeirinha, de malha urbanística ortogonal e colonial, desenha-se junto ao lamacento rio, mas de costas voltadas para ele, encerrada por enorme conjunto de barracões e armazéns. No eixo central da ‘’velha Rangon’’, eleva-se a dourada ‘’stupa’’ do pagode de Sula, hoje mera rotunda, rodeado por feios exemplos de arquitectura contemporânea, semelhantes aos de qualquer provinciana cidade Chinesa, ao lado de bonitas e monumentais construções de arquitectura colonial, já preservados e reutilizados como edifícios administrativos e políticos.

Uma aparente democracia muito musculada, onde os todo-poderosos militares, se limitaram a trocar as fardas por roupas civis, têm levado à descaracterização da antiga capital, pelo excesso de população e de construção.

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Mas a maior surpresa de Yangon, não é apenas o magnífico, belíssimo e indescritível Shwedagon. O mais precioso tesouro da cidade, é também o mais precioso bem de Myanmar; uma população simpática, calorosa e afectuosa, que nos sorri e saúda em cada momento, em cada metro de passeio, em cada parque e em cada rua. Da Birmânia, podemos escrever e contar sobre os monumentos e a paisagem, mas escasseiam as palavras, o engenho e a arte, para descrever aquele povo abençoado por Buda.

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Yangon é uma cidade que não encanta, mas também não desencanta. Porque não é bonita como Hanói, nem desmesurada e caótica como Ho Chi Min, nem fascinante e cinematográfica como Bangkok, nem futurista e tradicional como Kuala Lumpur, nem alucinante e elitista como Singapura, nem provinciana como Phnom Penh, nem saborosa com Luang Prabang.

Em 1989, a junta militar ordenou que se passasse a denominar Yangon. Em 2005 perdeu o estatuto de capital, mais uma vez os todo-poderosos militares, usaram e abusaram do poder e, transferiram o governo oficial do país, para a mais calma e controlável cidade provinciana de Naypyidaw.

 

O comboio oscilante para Mandalay.

Numa quente madrugada em Yangon, saímos do ‘’Thamada’’ para um curto percurso até à estação ferroviária central. Tomámos, quase de assalto, o comboio para Mandalay. Sentimo-nos personagens do ‘’Grande Bazar Ferroviário’’ de Paul Theroux, um dos meus muitos livros de cabeceira. Na carruagem central, de largos e confortáveis assentos, quase deitados, revestidos de lona em tom verde-escuro, instalámo-nos para uma longa viagem de cerca de 12 horas.

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Viagem inesquecível, num comboio mítico, que dançava, oscilava e saltava, mais do que frágil barcaça em dia de tempestade. Em cada estação, a ‘’nossa’’ carruagem era tomada de assalto por vendedores ambulantes de inumeráveis petiscos. Alguns, chegavam carregados de cestos onde se dispunham arroz cozido, legumes e molhos diversos. Com velocidade e habilidade, compunham as variáveis gastronómicas, enquanto os odores das especiarias e temperos, enchiam em vagas alternadas, a carruagem. Outros, erguiam em precários equilíbrios, fritos, panados e empadas de insuspeitos paladares. Alguns dos vendedores de frutos ofereciam cachos de ‘’mangostão’’; de casca coriácea e púrpura, coroados de pétalas verdes e recheados de carnuda polpa alva e doce. Outros, mais afoitos, provocavam-nos com os terríveis ‘’durian’’, de casca espinhosa de cor ocre e polpa amarela e fedorenta. Os odores podres de tal fruto, pareciam já soltar-se da casca demasiado madura. Viajar em Myanmar, é uma festa para os sabores.

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As horas escoaram-se lentas e felizes, no comboio para Mandalay. Tecemos laços mais cúmplices na nossa equipa de viajantes, pois é no doce tempo das longas viagens, que melhor nos conhecemos.

Um incessante movimento, entre passageiros, militares e funcionários, denunciava uma incipiente teia de pequenas corrupções e favores trocados; um lugar sentado, uma troca de ofertas. Em suma, tudo perfeitamente inofensivo, para quem partilha a ‘’espuma dos dias’’, num país podre e corrupto, como o ‘’nosso’’ rectângulo sem soberania.

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Durante todo o dia tivemos por agradável companhia, pequenos e brincalhões roedores, que em apressadas corridas, oscilando longas caudas esguias, atravessavam rapidamente a carruagem. Quando o crepúsculo da planície Birmanesa, desceu sobre o comboio para Mandalay, as vagas de insectos, de desmesurado tamanho, carnudos e atrevidos, invadiram as carruagens, socando-nos no rosto. Assim se viaja em Myanmar.

Ao longo de todo o percurso de centenas de quilómetros, sentimos sempre o doce sabor dos sorrisos e afectos Birmaneses. Aquela longa primeira grande viagem, por terras de Burma, foi o primeiro, dos muitos momentos, em que aquele magnífico povo nos ensinou que ‘’…cativar é criar laços…’’.

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Gosto de desfrutar de longas viagens de comboio, como gosto de permanecer em cafés e em largos. Assim consigo guardar aquelas vivências que escapam sempre ás meras imagens gravadas e ás palavras escritas.

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No final da viagem, chegados à estação central de Mandalay, senti a primeira visão de Myanmar, tal como a minha imaginação me permitira sonhar. Nos cais, centenas de pessoas dormiam já, estendidos nos pavimentos, numa sinfonia de cores e sonoridades, enquanto outras tantas, se afadigavam em milhentos afazeres. Uma alta construção, plena de movimentos e ritmos, aguardava por nós. Lá fora, na quente noite, uma azáfama de pequenos veículos motorizados, recolhiam os passageiros, seguindo a mais elementar regra matemática da Indochina, onde cabem 3 ou 4, cabem sempre 8 ou 10.

Alguns dias em Mandalay.

É a segunda cidade de Myanmar, deitada sobre as baixas margens do Irrawaddy, em redor de uma colina. Implanta-se no centro do país, é uma urbe já bastante populosa, algo mais de um milhão de almas. Foi capital do reino, por um curto período, no final do século XIX.

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Se um dia, Buda deixou a marca do seu sagrado e beatifico pé, em Mandalay, não o sei, mas prefiro acreditar, pois sinto-me fascinado pela magia indecifrável, mas lúcida, das religiões. Gosto das histórias, que muitos sagrados textos nos contam, leio-os como contos de fadas para gente crescida.

A cidade, gozou dos favores reais dos muitos soberanos dos reinos da região, prosperou graças aos favores de Buda e dos homens comuns.

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Mandalay é uma cidade bonita, agradável, vasta e quase plana, desenhada por largas avenidas em torno de um núcleo urbano histórico; a cidade real, protegida por largo fosso, delimitada por fortes muralhas coroadas por elegantes torreões de telhados com retorcidos beirados. No interior da cidadela, abriga-se o magnífico palácio real; conjunto de muitos edifícios em madeira, de vermelhos telhados sobrepostos, com arrebitados e retorcidos vértices, numa belíssima e arriscada composição arquitectónica, já por diversas vezes destruída e mutilada por grandes incêndios. As construções independentes, mas ligadas por galerias e pátios, desenham-se implantados em redor de largos relvados, coroadas por um cilíndrico torreão em madeira, criando uma bucólica e histórica cenografia. 

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A primeira surpresa que o Jorge, nos preparou em Mandalay, foi um passeio de bicicleta, cada um na sua ‘’buga’’ e, todos em conjunto, num mergulho pelo trânsito caótico de uma grande cidade. Os primeiros minutos foram os mais difíceis, sem o suficiente treino, em circular a pedal, na Indochina. A regra foi seguir a multidão e o Jorge, sem tomar iniciativas arriscadas, mas também sem hesitações. A Maria José e o Marcos, optaram por serem conduzidos, numa bicicleta com ‘’sidecar’’, como verdadeiros burgueses colonialistas! Ao fim de uma hora, já estávamos ‘’prós’’ e até ao repentino cair da noite, foi aquele o nosso meio de transporte. Pedalámos felizes, pelas ruas de Mandalay, como uma nova tribo de um saudoso ‘’Verão Azul’’, com uma única diferença, não soubemos assobiar a banda sonora da série.

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No dia seguinte, ainda o Sol não despontara e, nova surpresa, inventada pelo Jorge, acontecia. Junto à ‘’nossa casa’’, em Mandalay, alinhavam-se já as motorizadas com os respectivos motoristas. Aconteceu mais um dia de festa e, durante muitas horas, os ‘’drivers’’ conduziram-nos pelos arredores da cidade, num percurso pelas sucessivas capitais reais dos pequenos reinos Birmaneses de outrora. A paisagem envolvente, verdejante e salpicada de muitas agulhas de fulgentes dourados, em ambas as margens do Irrawaddy; o calor forte e opressivo; um céu ora plúmbeo, ora luminoso, todos os elementos se conjugavam para mais um inesquecível dia.

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Vimos Budas dourados e gordos por camadas sucessivas do nobre metal, colocadas sobre a sua primitiva imagem. Descalçámo-nos dezenas de vezes para entrar nos sagrados recintos. Assistimos a orações e venerações e ás lavagens dos pavimentos marmóreos dos desmesurados templos. Em tudo, Mandalay nos fascinou.

Não gosto de comparar lugares e pessoas, mas não resisto a aqui escrever que em Mandalay, recordei a velha cidade de Hué, digníssima capital real do Vietname central, onde permaneci alguns dias, já há alguns anos

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O elemento central e fulcral da essência cultural de Mandalay, é indissociável da religião Budista; algumas centenas de pagodes, povoam a cidade. Não sei o nome de todos os que vi, nem tão pouco dos que não vi, apenas sei que me senti infeliz por ser homem de pouca fé, em Mandalay, mas feliz por lá permanecer por alguns dias.

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A cidade é coroada por uma soberba colina; o monte Mandalay que esperava por nós, num final de tarde. Ao longo de pouco menos de 2 milhares de degraus, alinham-se pequenos templos e muitas lojas e, no topo; debruçamo-nos sobre a vasta cidade, até onde o horizonte permite e a vista alcança.

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Todos os espaços religiosos de Mandalay, são plenamente vividos e usufruídos, plenos de fiéis devotos, de vozes e orações, de gargalhadas e devoções, de comércio, em suma de vida plenamente vivida. Assim se vive e se sente em Myanmar.

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Nas planícies aluviais que cercam Mandalay, os nossos motorizados motoristas, conduziram-nos à belíssima ponte de U Pein. Atravessámo-la serenos e lentos, para que o tempo não se escoasse veloz. A longa e elegante ponte, construída em madeira de teca, de aparência frágil, mas vetusta de mais de dois séculos, belíssimo abraço entre as duas margens do rio. Naquela alvorada cinza, rasgada por ténues raios de luz, cruzámo-nos com serenos monges e olhámos jovens pescadores em precários equilíbrios, debruçados sobre os madeiramentos da ponte.

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No regresso, cruzámos o largo e pouco profundo rio, em estreitas e longas barcaças, como que dançando entre as centenas de pescadores que, de pé e com água pelo ventre, lançavam as altas canas ao encontro de pequenos peixes.

As fraquezas humanas, não nos permitem, conhecer e aprender, sem comer e, quando parávamos para os petiscos, bebíamos sempre saborosíssimas cervejas, tiradas à pressão. É bom viajar em Myanmar.

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Os dias de Mandalay, escoaram-se rápidos entre as constantes descobertas de templos Budistas, por toda a cidade e de palácios na cidadela real; entre saberes e sabores, dos deliciosos manjares regados com fresca cerveja e desfrutando dos ritmos e sentidos da cidade.

O Irrawaddy; o grande rio.

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O Irrawaddy é o coração vibrante de Myanmar, ele estende-se por mais de dois milhares de quilómetros, desde a montanhosa fronteira Chinesa, até mergulhar lamacento, com muitos braços abertos, num enorme delta sobre mar de Andaman. Alimenta uma vasta bacia hidrográfica de cerda de meio milhão de km2. Se os caprichos da natureza tivessem desviado este grande rio das planícies de Burma, então os reinos da Birmânia não teriam existido. O rio cobre-se por densas nuvens de fortíssimas chuvadas, durante muitos meses por ano, é esse clima quente e húmido, de forte pluviosidade, que oferece à Birmânia as férteis terras, que alimentam os seus habitantes. O rio de nome impronunciável, foi beber o nome ás raízes do antigo Sânscrito e de deuses Hindus. Alimenta-se, de Norte para Sul, como a maior parte das vias fluviais da Indochina, pelas águas que escorrem dos Himalaias. É nas suas margens que vive a maior parte da população de Myanmar, o rio é o coração e a estrada de um país. Os Britânicos, com inequívoco espírito poético e sentido prático, chamaram-lhe a ‘’estrada para Mandalay’’. Também nós; ‘’tugas’’ de corpo, mas cidadãos do mundo em espírito e atitude, seguiremos dentro de alguns dias, essa magnifica estrada líquida, rumo a Norte.

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À Birmânia e ao Irrawaddy não lhes seria permitido existirem, um sem o outro, são inseparáveis, geográfica e culturalmente. Sonhei com o grande rio Irrawaddy, desde os meus primeiros anos de juventude, quando, mais do que ler saboreando, devorava livros de aventuras em lugares distantes, sabendo que um dia, mais tarde ou mais cedo, os poderia conhecer.

Quando o avião que me transportou de Guangzhou para Yangon, onde eu era o único branquinho desbotado, fez uma larguíssima curva, sobre o Sul de Myanmar, vi pela primeira vez, com olhos de ver, o desmesurado delta do Irrawaddy de largos braços lamacentos abertos.

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 Numa manhã quente de Mandalay, os nossos amigos e ‘’drivers’’, conduziram-nos a um oscilante cais de embarque, em toscas pranchas de madeira. Despedimo-nos com a mesma afectuosidade que eles nos souberam transmitir e ensinar e embarcámos para uma viagem fluvial de mais de 10 horas, rumo a Bagan.

Percurso lento e animado, ao longo de um calmo dia, em que trocámos amenas conversas, jogámos fora palavras, comemos e bebemos muito, gargalhámos, com a fúria de japoneses fanáticos, escrevemos e dormitámos. A paisagem passava lenta e verde, o caudal barrento corria ondulante e o destino aproximava-se com o cair do Sol.

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Bagan: a casa da Ruby e os templos.

Atracámos numa enseada poeirenta, perto das aldeias que povoam o vale de Bagan e, o inefável Jorge, negociou uma carrinha onde nos amontoámos divertidos.

Em breve, primeiro por uma esburacada estrada, talvez datada dos tempos da colonização Britânica, depois por caminhos de terra batida, chegámos à ‘’nossa casa’’ em Bagan.

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A ‘’casa da Ruby’’ é um lugar de difícil descrição; numa ampla zona verde, implantam-se diversas casas em madeira, com alpendre e cadeiras de bambu, num estilo arquitectónico que associamos de imediato à Indochina colonial. O cenário completa-se com exuberantes jardins, caminhos pavimentados em saibro e pérgolas em madeira, mas o que mais nos cativa na ‘’Ruby True House’’ é a afabilidade e a simpatia com que somos acolhidos, pela Ruby omnipresente e omnisciente e, por todo o pessoal que cuida de nós, melhor do que nas nossas próprias casas. A casa da Ruby é, sem qualquer margem para dúvidas, uma casa de afectos, sentidos, vividos e partilhados. No dia da nossa partida, um exército de funcionários, ás ordens ‘’da general’’ Ruby, veio acenar-nos longamente e até do céu caíram gotas de chuva.

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Bagan não é uma cidade, mas um conjunto de aldeias implantadas numa extensa planície, debruçada sobre o Irrawaddy. A fé em Buda e o engenho e a arte dos homens, criaram um universo arquitectónico que é impossível contar, quer em palavras ditas, quer em palavras escritas.

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Em Bagan abundam ‘’estórias’’ que remontam à noite dos tempos, de reis lendários, muitos séculos antes dos reis reais, desde Anawrahta.

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A extensa zona histórica construída entre os séculos XI e XIII, durante o primeiro império Birmanês, demonstra-nos ainda, a importância do centro espiritual e temporal de Bagan, pólo de atracção de estudiosos Budistas dos reinos próximos; Índia, Sri Lanka, Tailândia e Khmer.

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Bagan recebeu influências religiosas muito diversas, desde das várias regiões da vizinha Índia, até ao Sri Lanka. Toda este cadinho cultural, resultou num extenso catálogo arquitectónico de templos e ‘’stupas’’.

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Nos dias de Bagan, desfilámos perante templos de impronunciáveis nomes; Sulamani Bagan, Ananda, Thatbyinnyu, Dhammayanzika, Gawdawpalin e Dhammayangyi. Muitos deles intactos, outros danificados pela inclemência da mãe natureza e da força dos sismos, mas todos eles vivificados e utilizados como lugares de oração e devoção. Em todos os templos Budistas de Bagan, havia monges, devotos, oferendas, em todos tivemos que nos descalçar, por serem lugares de culto, em todos nos maravilhámos e todos permanecerão indeléveis nas nossas memórias. Os murais e as esculturas, magníficos; as cores e a arquitectura, sublimes; o ambiente e a envolvência, inspiradores. Tudo nos cativou em Bagan.

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Em Bagan, um Jorge inspirado por Buda, brindou-nos com nova surpresa; desta vez passaríamos a ser nós próprios, condutores das motorizadas eléctricas. Após meros cinco minutos de treino, lá partiu esta tribo de ‘’Tugas’’ aventureiros, numa quente madrugada, por caminhos empoeirados e sem visibilidade, em indisciplinada fila Birmanesa. Muitos quilómetros decorridos, entre caminhos poeirentos e esburacados, por rasgos de lama e terra húmida, eis-nos chegados ao destino. Subidos altos degraus, em desgastada pedra talhados e, sublime milagre arquitectónico, abriu-se diante destes velhos e cansados olhos, uma belíssima panorâmica do vale de Bagan, coberta pela neblina de uma manhã ainda não nascida.

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Numa infindável planície de verde e ocre pintada, até onde a vista permitia alcançar; erguiam-se magníficos e sublimes, dezenas de templos piramidais, coroados por ‘’stupas’’, numa perfeita e deslumbrante cenografia, edificada pela fé, o engenho e a arte dos homens construtores de há oito séculos.

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Em silêncio permanecemos, quando o Sol rasgou a noite cinza e, em oblíquos raios de luz, afastou as nuvens e lavou do chumbo da noite, aquelas pináculos que rasgavam o céu. A pedra em indecifráveis tons de castanho, pintou-se de ouro e fiz-me personagem de um vitral das catedrais de Chartres ou Leon.

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Sinto-me muitas vezes, homem de pouco valor, mas naquele momento acreditei que afinal, a vida tem-me proporcionado momentos de tamanha felicidade, em que me encontro depois de muitos desencontros. Lembrei-me de tempos pretéritos, perdidos e reencontrados pela memória, porque a minha vida tem sido sempre, uma busca de um tempo perdido.

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Sonhei acordado, por breves segundos, com os ‘’salar’’ de Uyuni na Bolívia, com o calor e o frio do Sahara Africano e de Atacama no Norte do Chile, com as cordilheiras do Nepal e dos Andes, com o vale do Rift e os lagos do Quénia, com a luz de um amanhecer em Veneza ou em Angkor, com as pedras de Petra, de Machu Pichu e de Persépolis, com as pequenas igrejas românicas do caminho de Santiago, com os cafés de Istambul e Buenos Aires, com o vermelho de Marrakech e o azul de Jodhpur, com tantos lugares sentidos e encontrados, com pessoas perdidas para sempre que passaram por mim fugazmente e em mim permaneceram, com os livros que li e que com os que nunca poderei ler. Sonhei acordado e, por escassos segundos, senti um mundo em nós e fiquei feliz.

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Até a brusca tempestade de chuva e lama, que nos encharcou o corpo e lavou o espírito, numa manhã logo após o nascer do Sol, pareceram obras divinas de um benevolente Buda, aos olhos de um homem céptico e incrédulo, este narrador.

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